Cães e humanos sincronizam seus cérebros ao brincar

Não funciona com cães autistas, mas um LSDzinho resolve

Ah, a ciência. Umas duas décadas atrás, tudo o que eu vou escrever aqui – mutações induzidas a dedo, cães autistas, sincronização entre cérebros – seria coisa de ficção científica, mas hoje é tão perfeitamente factível que eu nem preciso explicar que essas coisas são possíveis; posso pular direto para a estória. Segue, então.

Em artigo publicado na revista Advanced Sciences, a equipe de Yong Zhang, na Academia de Ciências da China, mostra que humanos e cachorros passam a sincronizar suas ondas cerebrais conforme eles interagem todos os dias, olhando um para o outro e fazendo/recebendo festinha. O achado demonstra que a “sincronização cerebral” é possível não só entre indivíduos da mesma espécie (o que já se sabia), mas também entre espécies diferentes.

“Sincronização cerebral” não significa que dois indivíduos estão pensando a mesma coisa, contudo. Como o que é medido é a intensidade do sinal do EEG, quer dizer, das ondas elétricas do cérebro na superfície da cabeça, o termo “sincronização” indica apenas que quando um membro do par fica mais calmo e relaxado ou mais excitado e atento, o outro fica também. Com a interação dia após dia, humano e cachorro formam aos poucos um laço onde um indivíduo literalmente “entra na onda” do outro ao interagirem – e a direção do olhar mais o contato físico são o veículo dessa sincronização.

Acontece que o laboratório que investigou a sincronização cerebral entre cães e humanos é o mesmo que anunciou ano passado a criação de beagles portadores de uma mutação no gene Shank3, fortemente associado com autismo: ainda que apenas uma minoria de pessoas autistas tragam essa mutação, todo indivíduo portador dela é autista. Induzida em camundongos, a mutação causa hipersensibilidade sensorial, ansiedade e retração social – as marcas registradas do autismo. Da mesma forma, os beagles com a mutação são acanhados, não seguem ou buscam humanos, tem muito menos interesse em se aproximar, cheirar e lamber sua mão, nem são de abanar o rabo. Claro que a pergunta seguinte, então, foi: O que acontece quando humanos normais e cães autistas se encontram?

A resposta é: nada, em termos de sincronização cerebral. O cérebro dos cães autistas não segue a onda do cérebro humano do outro lado. Mas uma dose de LSD para os cães basta para deixa-los mais “sociáveis” pelos próximos dias.

Eu consigo imaginar o porquê. A maior fama do LSD ainda é como alucinógeno, mas a droga tem um efeito ansiolítico poderoso e de longa duração que pelo jeito funciona até nos cachorros, e a ansiedade é um freio poderoso de interações sociais. Para quem tem hipersensibilidade a sons, luzes, contrastes, cheiros e texturas e em consequência vive em um estado de ansiedade elevada, acho perfeitamente razoável hesitar em ir na onda de estranhos, sobretudo humanos barulhentos e cheios de energia. Se você acha besteira, imagine como você funcionaria chegando para jantar, ou para trabalhar, no meio de um desfile de carnaval.

Mas como a maioria dos humanos tem muito menos sensibilidade sensorial e acha perfeitamente desejável interagir socialmente com estranhos, então a definição estatística de “normal” é “sociável”. O resultado é que a gente cresce ouvindo da mãe: Não fale com estranhos, não aceite balas de estranhos... mas seja sociável. Não é de confundir a cabeça de qualquer criança?

Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado na Folha de São Paulo em setembro de 2024.

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