Das estrelas aos neurônios

Claro que nada disso seria possível sem a biologia subjacente, mas cada vez mais me convenço que o que realmente nos separa dos outros animais é a extensão da nossa capacidade de investigar sistematicamente o mundo e passar nossos achados adiante para as gerações seguintes. O resultado disso é a quantidade impressionante de tecnologias que se acumulam e evoluem, resolvendo questões anteriores e trazendo outras novas, antes impensáveis.

Pense, por exemplo, em como sabemos que somos feitos de células, pequenas unidades invisíveis ao olho nu que formam um todo que em <em>nada</em> se parece com seus pedaços. Sabemos que somos feitos de células porque alguém resolveu usar a óptica de um telescópio para observar o muito próximo, ao invés do muito distante.

Ainda assim, até muito recentemente “observar ao microscópio” queria dizer olhar o que já foi vivo, mas não é mais – porque foi necessariamente cortado em pedacinhos para caber sob a lente, tingido para se tornar visível, fotografado em partes depois montadas como um quebra-cabeças.

Mas não mais. Graças a invenções que valeram dois prêmios Nobel – uma adaptação de proteínas naturalmente fluorescentes de águas-vivas que hoje podem ser incluídas geneticamente como parte das células, como lanternas vivas, e uma nova forma de microscopia emprestada da astronomia -, agora é possível estudar células cuidando das suas vidas enquanto se dividem, comem outras células, e até mesmo durante o desenvolvimento embrionário (peixes se desenvolvendo na jacuzzi do microscópio).

O novo microscópio é uma geringonça irreconhecível que escaneia células vivas, mantidas numa mini-jacuzzi, com lâminas ultrafinas de laser, e emprega a óptica adaptativa de telescópios para usar uma “estrela guia” dentro do tecido e corrigir a distorção da imagem criando uma distorção idêntica no sentido oposto, que cancela a original. Olhar para cima ou para baixo, quem diria, é quase a mesma coisa.

Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado em abril de 2018 na Folha de São Paulo

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