Doutores demais, doutores de menos

Humanos são uma espécie míope, que tende a só apreciar o que está debaixo dos olhos, que mal conquista uma nova tecnologia e já vive como se ela sempre tivesse existido – ou, pior, passa a desprezá-la. Rádios, televisão, computadores de mão, vacinas e internet já foram amados e odiados. Mas nada disso me preocupa: enquanto a grande maioria da população continuar informada e vacinando seus filhos, sobreviveremos (quase) todos, inclusive os filhos de pais que preferem ignorar tudo o que microbiologia e imunologia aprenderam, protegidos ainda assim pelos anticorpos alheios.

Preocupante é o futuro do conhecimento em si, cuja curadoria e desenvolvimento depende de uma minoria cada vez menor e mais desprezada no Brasil: os cientistas. É uma classe por definição cara de educar, porque a esta altura, no século XXI, requer décadas de treinamento para adquirir o domínio do conhecimento acumulado, para só então garantir sua continuidade e dar sua própria contribuição.

Porque não se “inventa uma vacina”; primeiro alguém se pergunta por que certas pessoas ficam subitamente doentes, se interessa por como a doença se espalha, ignora todos os palpites populares sobre humores e espíritos, resolve investigar possibilidades e eliminá-las sistematicamente, tira proveito de uma tecnologia recém-inventada e descobre microorganismos até então invisíveis, experimenta e constata que eles são a causa da doença e do contagio, descobre substâncias de defesa no sangue dos sobreviventes, tem a ideia genial de induzi-las sob encomenda.

A cultura imediatista e que só pensa no próprio bolso demanda vacinas e acha que basta formar “mais cientistas”, largando-os na rua tão logo se tornam competentes. A que pensa no futuro, ao contrário, entende que ter o maior número de neurônios no córtex cerebral dentre os animais do planeta não basta: ela valoriza sua minoria altamente treinada e lhes dá condições de trabalho.

Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado na Folha de São Paulo em julho de 2018.

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