Ensaio geral
Fazia 20 anos que eu não pisava em um palco – e não houve ensaio geral: fomos da sala de aula diretamente para a apresentação pública do nosso número de sapateado que, além da coordenação dos pés, envolvia bolas de basquete quicadas, jogadas para o alto, arremessadas para as coxias e de volta para nossas mãos em plena coreografia (o tema do espetáculo era o Pan, claro). Seguir a recomendação da professora para chegar uma hora mais cedo ajudou com o reconhecimento do terreno atrás das cortinas: os camarins, a passagem escura por trás do palco, as coxias. Mas nada, além do ensaio geral, nos prepara para o momento em que as cortinas se abrem e todas as luzes e olhares recaem sobre nós. Por que é tão difícil manter a concentração nessa hora?
Parte do cérebro da neurocientista de plantão entrando com os nervos à flor da pele no palco escurecido berra “é o locus coeruleus a mil com tantas novidades, preparando o cérebro para lidar com o assunto!” mas, para o bem da coreografia, é devidamente calada e deixa que as outras de fato cuidem do assunto pelos próximos dois minutos – inclusive o tal do locus coeruleus.
Essa pequena região do tronco encefálico é responsável por deixar o cérebro atento, pronto para a ação quando há uma tarefa a cumprir mas também quando o cérebro se encontra em um local novo, rodeado pelo desconhecido – como um palco onde se pisa pela primeira vez. Como o desconhecido é uma fonte em potencial de perigos à espreita, é fundamental que o locus coeruleus faça com que cada detalhe não familiar exija para si a atenção do cérebro. O processo é tão automático e importante que conhecê-lo não ajuda em nada. E assim tem-se uma neurocientista no palco lutando contra os clamores do seu locus coeruleus para se manter focada na coreografia e não nos refletores da platéia, no microfone no chão do palco, no plástico preto que cobre o chão, na música que mal chega aos ouvidos, nas luzes vermelhas de todas as câmeras e na pessoa na coxia para quem jogar a bola.
Para isso serve o ensaio geral, seja de peça de teatro, concerto ou dança: para tornar o desconhecido conhecido e assim manter calmo o locus coeruleus na hora H, o que deixa seu cérebro cuidar do recado em vez de ficar registrando pela primeira vez detalhes desconhecidos ao redor.
Por sinal, a segunda apresentação, no dia seguinte, foi ótima. A primeira serviu como ensaio geral e deixou o locus coeruleus de todos nós mais tranqüilo...
Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado em julho de 2007 na Folha de São Paulo