Observações de uma neurocientista autista no twitter
Quando uma incapacidade é um superpoder
Notícia bombástica para começar o ano novo: faz quatro anos que eu descobri que sou autista. Me poupem, por favor, de comentários “bonzinhos” ou “elogiosos” do tipo “nossa, não parece”, ou “mas você parece tão normal”. Funcionar no mundo dos normais, ou “neurotípicos”, dá um trabalho danado. Além das esquisitices idiossincráticas a cada autista, não entender a intenção dos outros transforma crianças no espectro autista em para-raio de bullies, o que explica por que minha infância foi um inferno nesse sentido (no resto, meus pais foram maravilhosos e, sem saber, fizeram tudo certo pra ajudar uma criança autista – depois eu conto).
Mas agora, adulta, eu descobri que não ter a menor noção de que estão tentando ser cretinos comigo tem suas vantagens. Na verdade, beira um superpoder: é quase impossível me insultar. E, sem querer, descobri que ser “ininsultável” (criar palavras também é um traço autista) é uma forma maravilhosa de combater os trolls nas mídias sociais.
Um vídeo que rola por aí ilustra este superpoder magistralmente: é um pato, na dele, no chão, cercado de vacas que avançam, ameaçadoras, tentando intimidá-lo... e fracassam, uma atrás da outra, porque o pato não dá a mínima para as ameaças. Não sei o que o pato estava pensando, mas sei o que ele estava fazendo (outro traço autista - a gente se foca nos fatos, não na interpretação): o pato agia como se não entendesse que as vacas chegando perto dele tentavam fazê-lo bater em retirada. Donde o pato continuava na dele, exatamente onde estava. Sensacional. Problema dos outros, que querem ser cretinos.
Dei-me conta que esse pato sou eu e outros como eu cujo cérebro não infere automaticamente as intenções alheias. Voltei ao twitter recentemente, por motivos profissionais, e andei me divertindo nos últimos dias com um post sobre minha descoberta de que tiranossauros eram os babuínos da sua época, em termos de números de neurônios. O post viralizou, o que naturalmente quer dizer que os trolls apareceram – no caso, me “explicando” que eu estava obviamente errada por isso e aquilo outro.
O problema é que eu me atenho aos fatos e respondo naturalmente, concordando com o que está certo e apontando o que está errado, e por que está errado, e qual é a versão correta. Como o pato que não sabe que está sendo intimidado (também no meu twitter), não entender que estou sendo insultada me impede de me sentir insultada, o que é uma maravilha nas redes sociais. Os trolls amansam. Tem troll que pede desculpas, imagina!, e volta calminho, se explicando e até fazendo elogio, dizendo que foi só brincadeira, perdão.
Não recomendo querer ser autista por causa disso, mas minha recomendação seria irrelevante porque autismo não se escolhe, nem pega. A gente nasce com um cérebro diferente, e pronto: como todos os outros, a gente aprende a funcionar com o que tem. A diferença, neste caso, é que eu respondo literalmente ao que foi dito, já que não acho que leio a mente dos outros, e ser literal é algo que os “normais” podem experimentar, também. É só fazer uma forcinha - como eu faço o tempo todo, ao contrário, pra lembrar que as pessoas não são literais...
Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado na Folha de São Paulo em janeiro de 2023