Um dia eu morro bem velha

Até lá, é preciso aprender a dizer Não

Li semana passada The Measure, de Nikki Erlick, uma ficção bem como eu gosto, do tipo experimento mental: E se um dia todos os maiores de 22 anos no planeta recebessem uma caixa com os dizeres “a medida verdadeira da sua vida se encontra no interior”, contendo um fio indestrutível cujo comprimento os cientistas logo descobrem que prediz a duração da vida de cada um?

A ficção segue uma série de reorganizações a partir deste evento nas vidas pessoal e política dos personagens centrais, que vão se emaranhando, todas a partir de um confronto que francamente me deixa estupefata pelo seu tratamento como surpresa: a realidade da morte, mesmo para quem escolhe não abrir a caixa. Então as pessoas não sabem que vão morrer, todas, mais cedo ou mais tarde? Precisa um fio para lembrar disso? Sou só eu e mais uns poucos que vivemos com essa constatação em mente, sem esquecer dela um único dia?

Sim, eu sofro de ansiedade crônica, mas a consciência da realidade da minha mortalidade não é parte da causa, e sim da solução. Acho reconfortante saber que nada é para sempre. É um tipo de reality check que nos força a abandonar a fantasia do tempo infinito e convida a estabelecer prioridades realistas. Seu tempo é limitado: o que você quer fazer com ele?

Talvez essa consciência seja uma parte fundamental da sabedoria que se ganha com o envelhecimento. Anos atrás, ouvi de uma colega neurocientista que o melhor benefício da idade era ela ter aprendido a dizer Não sem culpa. Acho que agora eu entendo o que ela quis dizer.

Dizer Não é algo que se aprende, porque exige contradizer todo o começo da nossa existência, que é aprender a dizer Sim: ganhar habilidades, estabelecer competências, formar padrões de ações diferentes em situações diferentes. Dizer Não é negar oportunidades e ir contra isso tudo, o que só se faz com introspecção e auto-consciência, que são duas coisas difíceis e, francamente, dispensáveis, pois é perfeitamente possível viver toda uma vida sem se pensar nela, só passando de um dia ao outro.

Dizer Não é complicado: requer presença de espírito para suprimir o Sim iminente, e auto-conhecimento para entender como a gente funciona, o que a gente quer, e principalmente o que a gente não quer na vida. Recusar o que levamos tantos anos aprendendo a fazer e a aceitar fazer é algo só se aprende à força de experiência e muita tentativa-e-erro. Cabe na agenda? Cabe, mas não quero fazer, obrigada. Pode ir junto? Posso, mas não quero, obrigada. Consegue aturar gente chata? Consigo, mas não preciso, então não vou aturar, obrigada. Concerto com música estridente nas alturas e todo mundo de pé, amontoado, segurando latinha de cerveja? Não preciso mais, obrigada.

A sensação de controle que acompanha a recusa consciente é um dos bens mais preciosos que se ganha com a experiência de vida.

Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado em março de 2023 na Folha de São Paulo

Anterior
Anterior

A dopamina do cachorro do Pavlov

Próximo
Próximo

Massa bruta primeiro, pensante depois