No escurinho, não: no escuro, mesmo
A gente sempre ouve que é importante dormir no escuro. “É para os olhos poderem descansar de verdade", “é para o cérebro saber que é noite”, “é para o corpo poder relaxar". O silêncio também é importante, por razões semelhantes: “para deixar o cérebro sossegado". Donde o quarto separado do resto da casa, as luzes elétricas com interruptor, as cortinas nas janelas.
Mas não é por isso que dormir no escuro e no silêncio é tão bom. Quem já adormeceu em plena aula, reunião, palestra importante ou na frente da televisão, mesmo, sabe que o cérebro é perfeitamente capaz de se retirar do mundo: não é preciso desligar o mundo para adormecer. Aliás, é justamente na falta de estímulo externo que a gente nota que o cérebro produz sozinho seu próprio entretenimento. Às vezes, produz até demais: meu cérebro de criança ansiosamente Aspie era mestre em testar pensamentos catastróficos - guerras mundiais, eu esquecer de respirar se não prestasse atenção, meu pai não voltar para casa de viagem se o avião caísse, essas coisas bem “light” -, então descobri rápido que o rádio-relógio da cabeceira, tecnologia do fim dos anos 1970, cuidava de oferecer uma distração externa. Depois veio a MTV, tocando música a noite toda. Eu deixava baixinho, fechava a porta do quarto, e adormecia, até minha mãe vir desligar no meio da noite, advogando pela paz do ambiente externo do meu cérebro (hoje em dia ela faz a mesma coisa: descobriu que volta a dormir depois que amanhece se colocar seus mini-fones com a CBN sussurrando em seu ouvido).
Muitos anos mais tarde descobri a máscara de dormir, tapa-olhos bojudos de esponja cobertos de um tecido azul-escuro macio que abraçavam minha cabeça e me permitiam abrir os olhos normalmente e não ver nada, mesmo dormindo no colchão de ar bem embaixo das janelas lindas e enormes da sala dos meus primos. Foi Sarahi, minha anfitriã, quem me deixou dormir depois do sol raiar ao me oferecer seus próprios tapa-olhos, que ela logo me deu de presente. Sarahi mudou minha vida: levo comigo em todas viagens essa máscara, que eu chamo de meu sutiã-de-olhos (my eyebra!), com suas conchas perfeitamente ajustadas ao rosto - nada daqueles pedaços de pano que os aviões em tempos idos ofereciam a todos os passageiros, melhores que nada mas com rombos enormes dos lados do nariz, perfeitamente permeáveis à luz. Ainda não achei onde comprar outro sutiã-de-olhos igual, já prevendo o dia quando o meu vai se esfarelar de tanto uso.
Poucos anos depois, descobri conforto soporífero adicional nos cobertores pesados com bolinhas de vidro que viraram moda. Àquela altura, já havia me descoberto Aspie, no espectro autista, e a paz trazida pelos oito quilos distribuídos sobre meu corpo me remeteram a memórias da minha infância - e finalmente entendi a razão da minha insistência em dormir com o ar-condicionado sempre ligado no meu primeiro quarto só meu, mesmo no inverno: o ronco constante apaziguador do aparelho vinha com o bônus do peso das várias cobertas necessárias para segurar o calor do corpo na minha Sibéria particular em pleno Rio de Janeiro. Eu tinha a sorte de ter pais que não precisavam controlar a conta de luz no fim do mês, e ser filha de mãe totalmente Aspie (embora até hoje em negação!) que entendia perfeitamente a importância de encontrar paz para o cérebro conseguir dormir.
Este era o meu nível avançado de rotina noturna: aos 50 anos vividos, eu havia descoberto os travesseiros perfeitos (um dos benefícios de dormir frequentemente em hotéis: a exploração compulsória de novos travesseiros), que acomodavam e abraçavam minha cabeça na medida certa; os lençóis perfeitos, não de cetim, mas de algodão acetinado que acaricia a pele; meu cobertor pesado, seus oito quilos me segurando quieta na cama como o conforto do braço de pai ou mãe ninando gente adulta; meu fiel sutiã-de-olhos, ainda o mesmo presenteado pela Sarahi; e o ronco dos meus cachorros aos meus pés ao longo de toda a noite, lembrança de que eu não estava sozinha no mundo.
Eu estava novamente solteira, e por fim resolvida a continuar assim, free spirit, sem ninguém para reclamar meu tempo para si já que aquela pessoa que valeria meu tempo pelo jeito só existia na minha cabeça e “o ótimo é inimigo do bom”, sim, exceto quando esse negócio de “aceitar o bom porque ninguém é perfeito” já não havia funcionado vezes seguidas, então com licença mas me deixem em paz. Obviamente que então o mundo resolveu rir da minha cara e balançar diante do meu cérebro aquele homem que eu não precisava conhecer, porque a gente se reconheceu logo de cara como se tivéssemos sempre vivido juntos, apenas não sabíamos que já estávamos juntos - e ele dormia em uma caverna.
Caverna, mesmo: um quarto sem janelas (que portanto não cumpre os requisitos para ser chamado de “quarto", agora sei) enfurnado no porão da casa dele, debaixo da terra. Acho que qualquer mulher normal e sensata teria saído correndo, inclusive porque a sala dele com o sofá estupidamente macio e envolvente também era no porão (a sala “normal” da casa era só para constar, ele não usava), já no escurinho. Mas, ao descer as escadas aquela primeira vez, entendi por que ele tinha feito do porão a sua toca e já me senti aconchegada, segura, protegida do mundo lá fora, então aceitei o convite para dormir no seu quarto sem janelas, sem luz, sem som externo algum além da nossa respiração.
Nunca dormi tão bem.
Fizemos nosso quarto também no andar debaixo da nossa casa, parcialmente encostado na terra. Ainda estamos caçando, fita isolante bem preta em mão, as luzes que entram pelas frestas do blecaute da única janelinha, a luzinha verde maldita que indica que o carregador dos telefones está funcionando (que, no escuro, é uma luz enorme), a luz vermelha do umidificador de ar. Aprendi a colocar o telefone em modo Não Perturbe, onde somente ligações dos meus pais e filhos passam pelo crivo da tecnologia que detecta pelo padrão exato das vibrações do ar quem está me ligando. O desafio da vez é encontrar como posicionar o relógio, projetado no teto, atrás das nossas cabeças, e com o mínimo de luz para ser apenas visível sem agredir os olhos.
O cérebro não adormece porque ficou sem ter o que fazer. Não é por isso que dormir no escuro completo, no silêncio completo, é tão bom - pois sem estímulo externo, o cérebro se vira sozinho e produz seu próprio entretenimento, que é aliás o que os sonhos são: o dia passado em revista (mas isso é outra estória). Dormir em silêncio e escuro absolutos é maravilhoso porque dá o mesmo conforto de saber que o sistema de alarme da casa está ligado e, como nas comédias em que o ladrão move um barbante, qualquer tentativa de invasão será anunciada com sirenes e panelas batendo: com rigorosamente nada acontecendo ao seu redor, o cérebro se descobre, finalmente, totalmente seguro em sua mais completa vulnerabilidade.