Abrindo a mente

Os caminhos da mente humana são um assunto delicioso, embora ocasionalmente espinhoso. Várias vezes, no período de perguntas após palestras, em programas de rádio ou em e-mails motivados por algo que escrevi, recebo a crítica de que a ciência, e a neurociência em especial, ao reduzir a mente a um punhado de matéria remove o divino da existência, despe a vida de poesia e mistérios. O reducionismo científico, afinal, não é um grande engano da ciência – uma crença, errônea, de que todo comportamento ou fenômeno poderia ser reduzido a moléculas?

Em vez de ficar chateada com essas perguntas, adoro respondê-las. A resposta longa começa com a lembrança de que René Descartes, o pensador francês que bolou o método do reducionismo, buscava uma maneira de abordar aquelas questões tão incrivelmente grandes e complexas que desafiavam tentativas de compreendê-las em toda sua extensão. Descartes, então, propôs quebrar inicialmente tais questões em partes menores, essas sim abordáveis. Compreendidas as partes, torna-se possível passar ao nível seguinte: entender como elas se encaixam e da sua interação emergem outras propriedades, não explicadas pelas unidades.

Este, o real reducionismo, funciona tão bem que até hoje é empregado – com sucesso! – como parte do método científico, a busca sistemática por entender como moléculas se arranjam em estruturas que se organizam em níveis cada vez mais complexos de cuja interação emergem habilidades extraordinárias como o pensamento.

A resposta curta, no entanto, é que eu discordo que a ciência dispa a vida de poesia, mistérios e encantamento. Minha convicção surgiu no dia em que, sentada à mesa da sala para fazer um trabalho de bioquímica para a faculdade, levantei os olhos para observar minhas primas, crianças, pulando às gargalhadas sobre o sofá-cama aberto. Naquele momento entendi que a bioquímica do livro estava nos corpinhos das minhas primas – e passei a enxergá-las como dois punhados de moléculas organizados de uma maneira tão maravilhosa que os transformava em crianças capazes de brincar, rir, ganhar consciência – e me fazer amá-las.

Se a ciência mostra que somos punhados de moléculas organizadas de maneiras específicas que nos tornam capazes de nos apaixonar, querer o bem e até achar nossa existência um milagre, então ela só torna a vida ainda mais extraordinária. Moléculas não pensam – mas se de sua organização nasce a mente, então isso não é poesia pura?

Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado na Folha de São Paulo em outubro de 2007.

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