Eu não sei quando parar

Mais um voo transatlântico, mais seis horas de trabalho ininterruptas. Amarrada a uma cadeira, sem opções além de ir ao banheiro ou catar alguma coisa sem glúten na bandeja servida como refeição, sem e-mails, internet, mensagens, alunos ou cães e gatos ao redor da minha mesa querendo atenção, eu escrevo muito bem. O que mais me resta fazer?

Mas desta vez o papo pós-embarque com o colega neurocientista ao meu lado, comentando a reunião da qual os dois voltávamos e trocando figurinhas sobre nossos conhecimentos sobre autismo, havia deixado algo em particular rodando no pano de fundo da minha cabeça. David Leopold é pesquisador no Instituto Nacional de Saúde Mental estadunidense, especialista em processamento sensorial, e conversamos entre outras coisas sobre a dificuldade da gente no espectro autista de reconhecer as próprias emoções. Fui ao banheiro, ele adormeceu, eu continuei pensando nas consequências dessa dificuldade, e portanto, de tabela, nas funções cotidianas das tais emoções.

“Emoção” é um nome que evoca algo adicional que acrescenta cor à vida, mas o que a palavra representa é muito mais profundo do que isso. Toda emoção é um estado corporal, fisiológico, visceral mesmo, que a gente associa a um estado mental. Eu já notei que quem me conhece sabe muito antes de mim quando eu estou incomodada ou irritada; a minha ficha só cai no dia seguinte, e só outro dia mais tarde é quando eu costumo descobrir o porquê do desconforto.

A conversa me fez atinar que exaustão também é uma emoção – e minha dificuldade de reconhecer seus sinais é ao mesmo tempo um superpoder e um problema. Lembrei da estória em um podcast do Radiolab sobre a mulher que se tornou ultramaratonista depois de passar por cirurgia para remoção de parte do córtex temporal para resolver epilepsia. Nas palavras dela: como ela agora não via o tempo passar, não sabia quanto tempo tinha decorrido, então não sentia exaustão psicológica – e continuava correndo. Essa mulher sou eu, e minha maratona é meu trabalho de pesquisa.

A esta altura do campeonato, eu já havia aceitado que meu padrão de trabalho não é um pouco todos os dias: é o que dá entre afazeres variados, e então MUITO toda vez que eu posso tirar uns dias inteiros de trabalho concentrado em um tema só, seguidos de exaustão e então um ou dois dias de recuperação e completa improdutividade – que eu ao menos já aprendi a curtir sem culpa. Feita a maratona da série da vez, com o cérebro desligado no sofá, o esgotamento terá passado, e eu vou estar mais uma vez morrendo de vontade de me atracar de novo com algum dos muitos malabares científicos que eu mantenho no ar.

Agora entendo o porquê. Tem gente que não sente dor; eu sinto a dor física, mas não a dor mental dos meus neurônios pedindo penico a não ser quando eles já estão caindo pelas tabelas. Se isso é bom ou ruim, não sei. Só sei que funciona...

Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado na Folha de São Paulo em julho de 2023.

Anterior
Anterior

É Alzheimer ou não é?

Próximo
Próximo

Abrindo a mente