Desde que funcione

“No final, todo mundo morre mesmo”, observa várias vezes Boris Yelnikoff ao longo do novo filme de Woody Allen. Sejamos racionais: se o fim é inexorável, para que adianta a vida, então? Por uma ótica puramente racional, levantar da cama não valeria o esforço. Se no entanto levantamos a cada novo dia, ou é porque temos algum argumento lógico que justifique a empreitada, ou é porque... não é a lógica que move a vida.

Eu tenho plena convicção da segunda alternativa, mas saí do cinema examinando mentalmente o que sei a respeito. Temos dentro do cérebro um conjunto de estruturas dedicadas a sinalizar, como diz Woody Allen, “whatever works” – ou seja, tudo aquilo que funciona, qualquer coisa que funcione dando resultado positivo (o título do filme em português, “Tudo pode dar certo”, foi uma escolha infeliz que deturpa o sentido da história, mas fazer o quê?). Se algo funciona, somos premiados com uma sensação de prazer e satisfação que tanto serve imediatamente de recompensa como nos dá ânimo para fazer o que for preciso no futuro para conseguir mais. Qualquer coisa que funcione nos impele a continuar saindo da cama.

E os outros animais? Por sorte, tinha dados fresquinhos na cabeça, já que passei as últimas semanas pesquisando sistemas nervosos das espécies mais variadas para um curso novo (e fiquei com a impressão que o grande papel do sistema nervoso é nos permitir comer e reproduzir; qualquer outra coisa é lucro – mas isso é outra estória). Medusas, anêmonas e pólipos, donos dos sistemas nervosos mais simples, se alimentam de maneira praticamente passiva: nadam por aí ou movem seus tentáculos aparentemente a esmo, e o que cair na rede é peixe. Ao contrário, os outros animais vão atrás de sua caça ativamente – o que deve exigir algum tipo de motivação. E, curiosamente, todos os que conheço já possuem alguma versão do nosso sistema de recompensa: se nós contamos com alguns milhares de neurônios dopaminérgicos que nos dão prazer ao fazer algo que funcione, moscas da banana, por exemplo, têm exatos quatro. Mas eles estão lá, e também servem para dar valor positivo a qualquer coisa que funcione.

Por que levantamos da cama, então? Porque temos um sistema de recompensa, e vamos em busca de alguma coisa que funcione para nós: “todo e qualquer amor que você possa dar e receber, qualquer alegria que você ganhe ou leve aos outros, qualquer ato ou graça temporária, qualquer coisa que funcione”.

Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado na Folha de São Paulo em maio de 2010

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Esquecer ou não esquecer, eis a questão