Nunca é tarde para músicas novas

Roda por aí uma lenda urbana segundo a qual é normal e esperado o nosso gosto musical “congelar” no tempo, de modo que uma vez adultos, o cérebro ficaria empacado na playlist das músicas descobertas na adolescência. Supostamente, por causa de uma “perda de plasticidade” do sistema de recompensa, estaríamos fadados a escolher eternamente ouvir apenas o Bonde do Tigrão ou a Nona Sinfonia de Beethoven e similares.

Quem já se deu ao trabalho de experimentar com coisas novas depois de adulto pode antecipar o que vem a seguir: é claro que essa lenda urbana é só isso mesmo, lenda. Mais especificamente, besteira pura.

O sistema de motivação e recompensa do cérebro, aquele conjunto de estruturas que registra com uma sensação de prazer nossas ações que tem resultados interessantes, esperados ou não, faz com que se busque de novo aquilo que funcionou no passado – ou seja, deu prazer. Uma vez já pode bastar para carimbar um evento, como uma música, como agradável e digno de repetição.

É fato que na adolescência essas estruturas ficam particularmente susceptíveis a novas descobertas, devido a uma perda programada de sensibilidade – responsável, aliás, pelo téééédio característico do início da adolescência: quando o que antes dava prazer deixa de funcionar. Drama dos adolescentes, o tédio é também vital por impulsionar o jovem a descobrir novos interesses, novos assuntos, novas fontes de satisfação como política, filosofia, músicas diferentes, sexo – e drogas, a maneira mais fácil de deixar o sistema de recompensa nas nuvens.

O começo da idade adulta marca uma fase em que a sensibilidade do sistema de recompensa se estabiliza, de fato. Mas ela nunca se perde – ou não sairíamos da cama, por pura incapacidade de antecipar os prazeres do dia. Pelo contrário, o mesmo sistema que nos mantem ávidos pelos prazeres descobertos na adolescência continua apto a descobrir novos interesses ao longo da vida.

Se nos damos ao trabalho de explorar novos assuntos, ideias e músicas, aí é uma questão de acaso, personalidade, crenças, valores mas, sobretudo, oportunidades. Eu, por exemplo, descobri já macaca velha, ao começar a conviver com músicos em Nashville, que a-do-ro um certo tipo de música Heavy Metal, melodiosa como o rock progressivo, e sobretudo com umas linhas sensacionais no baixo. Nossos amigos músicos já descobriram que para me atrair de qualquer lugar da casa para o estúdio é só começar a tocar a abertura das minhas músicas favoritas do Metallica. Quem diria...

Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado na Folha de São Paulo em dezembro de 2018.

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