Para consertar o estrago que o “jeitinho” faz

Não, tem coisa que só o tempo não cura: é preciso enfiar o dedo e fazer doer para ficar bom de novo. Aprendi da pior maneira possível. Um ano e meio atrás, feliz nova usuária de óculos progressivos, pisei em falso descendo a calçada para atravessar a rua e quase me estabaquei. Antes tivesse tomado o tombo: amparei todo meu peso de surpresa na perna direita e, agora sei, rasguei essencialmente todos os tendões que prendem os músculos de trás da perna à bacia. Vi estrelas, fiquei com um baita hematoma na coxa e os movimentos limitados. Levantar da cadeira? Só devagarzinho. Correr, nem pensar.

Um ano depois, pensando que o tempo teria resolvido o assunto, fui dar uma corridinha para aproveitar um sinal aberto... e a perna não foi. A dor voltou com tanta fúria que eu joguei a toalha: fui ao ortopedista.

Ganhei uma aula sobre auto-organização, um dos meus temas favoritos. As fibras dos tendões regeneram rapidamente, sim – mas, se deixadas ao sabor do tempo, crescem de qualquer jeito, amontoadas, desorganizadas. Como os neurônios do cérebro, elas somente tomam forma e ficam alinhadas se usadas com sucesso: neste caso, se forem submetidas repetidamente a tensão no sentido certo, contra o encurtamento dos músculos associados.

Lá fui eu para a fisioterapia, pela primeira vez na vida. Primeira lição: aprender a massagear os tendões profundos com meu próprio peso sobre uma bola de tênis. Isso aumenta a circulação no tecido e o deixa pronto para a segunda etapa: alongamento passivo, seguido de lições para... reaprender a usar a perna.

A culpa é do cérebro, num daqueles exemplos de emendas que destroem o soneto. Com os tendões rasgados, os músculos só encontram uma corda esfiapada para puxar, e a perna estropiada perde força. O cérebro, esperto como um brasileiro, rapidamente aprende a usar rotas alternativas: ficar de pé somente na perna boa, usar outras combinações de músculos para andar, manter a perna contraída de maneiras até então impensadas para evitar mais tensão nos tendões. Resultado: o “jeitinho” começa a causar dor constante.

De fato, a fisioterapeuta descobriu que eu estava usando vários músculos para levar a perna para trás – menos os músculos corretos. O tratamento? Reeducar o cérebro. “Contrai este músculo aqui”, me diz ela com o dedo enfiado na minha perna. Fiz várias tentativas, como se tentasse levantar só uma sobrancelha na frente do espelho, até encontrar o caminho certo do cérebro ao músculo. Reaprendido o caminho, agora é colocar peso nos tendões até recuperar a força. O jeitinho é o diabo...

Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado na Folha de São Paulo em fevereiro de 2018

Próximo
Próximo

Muito melhor do que uma câmera