Prazer para aprender
Minha filha pediu para trocar as aulas de balé por sapateado – e eu resolvi pagar mico e fazer aula com ela e as colegas da sua idade. Logo nas primeiras aulas já aprendemos a transformar o clop-clop desorganizado das chapinhas metálicas sob os sapatos nos sons ritmados dos passos mais básicos. E então surgiu um problema inusitado: a vontade de passar o dia todo batendo os pés no chão. Descobri-me com uma versão humana do pingüinzinho Happy Feet dentro de casa que, em vez de andar, sapateia – e de chinelos, daqueles bem barulhentos.
A mãe teria pedido silêncio, mas a neurocientista de plantão em mim interveio. As chapinhas de metal têm duas funções no sapateado: transformam os sapatos em instrumentos musicais de percussão, operados com os pés enquanto o resto do corpo dança, e oferecem ao cérebro retorno positivo de que ele está fazendo a coisa certa. Sem ouvir o som dos seus pés, como saber se eles estão recebendo do cérebro os comandos adequados e na hora certa e portanto aprender a sapatear?
O aprendizado depende de ao menos três fatores: repetição, base das mudanças sinápticas que implementam a nova maneira de agir, pensar ou sentir; retorno negativo, que informa quando se erra e deve se tentar de novo de outra maneira; e retorno positivo, que sinaliza quando se fez a coisa certa que deve ser repetida no futuro.
O retorno negativo é uma faca de dois gumes. Saber que você não está conseguindo agir como queria ou ouvir de outra pessoa que está tudo errado é importante, mas só serve como motivação para os mais determinados.
O que nos mantém tentando é o retorno positivo. Este é tão fundamental para o aprendizado que o cérebro se premia sozinho com sensações agradáveis toda vez que acerta. O benefício é duplo: o prazer de acertar reforça os programas que funcionaram como se desejava e ainda serve de motivação, a expectativa de mais retorno positivo, para se continuar praticando. Assim queremos tocar mais piano quando os dedos acertam as notas – e sapatear o tempo todo quando ouvimos nossos pés produzirem sons interessantes. Se formos elogiados, melhor ainda.
Claro, faz parte do aprendizado não bater os pés no chão quando há alguém dormindo ou tentando ler por perto. Mas, nas outras horas, não encorajar o reforço positivo do clop-clop de quem está aprendendo a sapatear seria um contrasenso. Ao invés de pedir silêncio, portanto, a neurocientista de plantão se levanta e vai sapatear também.
Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado em maio de 2007 na Folha de São Paulo