Sem noção do estrago

Tudo costuma parecer mais fácil para quem vê a situação de fora, é verdade. Mas se os estragos que o vício causa são tão óbvios para amigos e familiares não-dependentes – a deturpação das prioridades, o desgaste familiar, os custos financeiros, sem falar no envolvimento com o tráfico, quando o objeto do vício é ilegal, e os riscos de overdose e morte –, como é possível que o viciado insista no uso?

Uma explicação, bastante conveniente para alguns, é que o vício é doença. Mas não é: o viciado ainda é capaz de levar uma vida razoavelmente normal – desde que mantenha o cérebro devidamente abastecido com a substância. Quem precisa de várias doses de cafeína por dia, disponíveis legalmente em café e refrigerantes, dificilmente se diria doente por isso.

Todas as substâncias que causam vício têm em comum ativarem em excesso o sistema de recompensa do cérebro, que nos dá prazer e sinaliza o que é bom. Como o excesso faz com que o sistema se dessensibilize, tudo o que antes era bom deixa de ser, e assim doses cada vez maiores da droga são necessárias para gerar bem-estar suficiente.

Mas a estória não pára aí. Um dos assuntos mais quentes da reunião anual da Society for Neuroscience, encerrada ontem em Washington, DC, é a modificação adicional causada pelas drogas em duas regiões do córtex envolvidas no controle do comportamento. Uma é o córtex da ínsula, que se torna hiperativo no vício. Como essa parte do córtex monitora o estado do corpo e permite as sensações corporais variadas de mal-estar, a hiperativação torna o viciado especialmente sensível às sensações negativas da abstinência, que passam a ditar seu comportamento.

A outra modificação, talvez causada justamente pela ínsula hiperativa, é o “sequestro” do córtex pré-frontal, que se torna hipoativo. Nos viciados, essa deficiência está associada a uma menor preocupação com as conseqüências a longo prazo do vício e ainda à falta de insight do dono do cérebro sobre a própria condição. Ou seja: o cérebro não tem noção do estrago que está causando a ele mesmo – o que é muito conveniente ao seu propósito de conseguir ainda mais droga, e só faz prolongar a situação.

Mas há esperanças: o cérebro viciado ainda é capaz de avaliar o estrago causado pelo cérebro viciado alheio. E talvez aqui esteja a razão da utilidade da terapia de grupo, como nas reuniões de dependentes: usar um cérebro sem noção como exemplo para sensibilizar outro cérebro sem noção...

Extraído de Suzana Herculano-Houzel (2025) Neurociência da Vida Comum, originalmente publicado na Folha de São Paulo em novembro de 2008

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